metamorfose de uma paisagem I
metamorfose de uma paisagem II
Da evanescência das marés à intemporalidade dos lugares
(Metamorfose de uma paisagem I e II)
…quand nous parlons du temps, nous pensons à la mesure de la durée, et non pas à la durée même. Mais cette durée, que la science élimine, qu’il est difficile de con¬cevoir et d’exprimer on la sente et on la vit.
H. Bergson, Matiére et mémoire
O rasto da última maré já quase se perdeu na areia. Adivinham-se-lhe os derradeiros contornos, ainda capazes de seduzir os sentidos, “os” de cada um de nós, pelo mar adentro, na senda de uma intemporalidade de outros tantos horizontes.
Evanescência singular, esta, a das marés; eternamente pendular e regulada por uma métrica tão precisa que quase nos rouba o fascínio de podermos sentir o pulsar da imensa clepsidra que tanto mede o tempo “todo” como a sua ausência. Paradoxos.
239º SW 41º7’15’’ N 8º39’54’’ W – 11h 39 m – 3 jun 2016
Meia maré! Assim manifesto, o sentido geográfico e temporal de Salgueiros (Metamorfose de uma paisagem I), de tão linear e unívoco, com uma clareza e evidência tais, tende a afastar-nos de qualquer veleidade mais invasiva. Aparentemente, estão reunidos todos os requisitos necessários para que o aconchego/conformidade racional se realize dentro dos ditames do que se convencionou denominar de conhecimento. Em causa está a relação de maior ou menor proximidade cognitiva entre aquilo que somos e a “paisagem”.
De facto, a materialização do tempo, ou, nas palavras de Bernardo Pinto de Almeida, a transformação “…do tempo em espaço (tal é a grande transformação do instantâneo)” uma vez que “a fotografia como que territorializa”, constitui um dos riscos da imagem fotográfica. Risco de coisificação ou de conhecimento exacto do instante isolado, desvinculado da nossa condição de “ser-no-mundo” ...risco de nos ser negado o concurso da memória e da imaginação na construção criadora de um tempo interior (nosso) acerca do acontecimento. Por outras palavras, desenvencilhar-se do espartilho cronológico enquanto resultado de uma pura conceptualização, talvez signifique ser agente de uma experiência de reconstrução desse mesmo tempo interior (de vida) que, para além de ser pertença de cada um, é capaz de nos religar a uma compreensão mais ampla e totalizadora do devir e das suas múltiplas representações.
Como dissipar a densidade delimitadora do conceito de tempo e do lugar que o tende a preencher? Justapondo o mesmo lugar no mesmo tempo numa ubiquidade transfiguradora, ao ponto de diluir as coordenadas espácio-temporais numa metamorfose onde a leveza – sim, a “leveza” de que nos fala Italo Calvino – seja sentida e, sobretudo, vivida (Metamorfose de uma paisagem II).
Assim, a evanescência não é condição exclusiva da(s) maré(s), nem a intemporalidade constitui a marca d’água única das paisagens/lugares que Adelino Marques fotografou e agora nos propõe nesta exposição. Mas, poderão constituir-se como pressupostos essenciais de quem assume o acto de fotografar como se de um gesto hermenêutico se tratasse, sabendo, de antemão, que uma fotografia é simultaneamente uma pseudopresença e um signo de ausência (S. Sontag).
Rui Apolinário, dezembro de 2017